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terça-feira, 4 de novembro de 2014

VIDA PELAS VIDAS

Data de publicação: 04/11/2014

Texto e fotos Karla Maria
“O Evangelho me impulsiona a defender meu povo e em seu nome estou disposto a ir aos tribunais, ao cárcere e à morte”, dom Oscar Romero

Foi em uma noite quente de agosto que chegamos à capital de El Salvador. Estava um calor abafado, destes que grudam na  pele. A recepção do povo salvadorenho também era calorosa, carinhosa com sorriso estampado no rosto, era o tal jeito latino de ser quem acolhia. Ainda assim, algo incomodava, chamava a atenção, silenciosamente: as metralhadoras empunhadas pela polícia salvadorenha que fazia a segurança dos peregrinos brasileiros que ali estavam para percorrer os passos de dom Oscar Romero.

Era a polícia turística – uma polícia civil –, resultado do acordo de paz assinado em 16 de janeiro de 1992, no México, entre o governo de direita de El Salvador e a Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN), depois de uma guerra civil que durou 12 anos. Era a mão do Estado que agora fazia a segurança. A mesma mão que, em 24 de março de 1980, matou o arcebispo salvadorenho que se opunha ao regime de exceção e opressão, que deixou entre 60 e 80 mil mortos e outros 2 milhões de exilados.

Sequelas e traumas dessa ditadura ainda hoje são visíveis, palpáveis, seja em uma conversa de bar, em uma visita ao museu, entre os livros, em igrejas. Além do túmulo de dom Oscar Romero que se encontra na Cripta da Catedral Metropolitana; a igreja dos Dominicanos, a do Rosário, que, também no centro da capital, carrega ainda hoje em seu portão e em seu sacrário a marca de um projétil do exército salvadorenho, atirado em 22 de janeiro de 1980, durante manifestação de opositores ao regime.

“Na altura do Palácio Nacional, começaram as rajadas de metralhadora contra o povo, que se dispersou por toda parte, aturdido, deixando na rua vários mortos e muitos feridos. Muitas pessoas se refugiaram na catedral, outras na Igreja do Rosário e em outros lugares em que puderam se meter”, assim registrou em seu diário o arcebispo salvadorenho, dois meses antes de sua morte.

Monsenhor Romero, como é carinhosamente chamado pelo povo, defendia o diálogo e os mais pobres, os mais fracos: camponeses e estudantes que questionavam a ordem política e econômica que prestigiava o poder oligárquico. Em suas homilias, propagadas pela rádio da Arquidiocese, denunciava as torturas e desaparecimentos, a formação de esquadrões da morte de direita no país.

“Em nome de Deus. Em nome daquelas pessoas sofredoras, cujos gritos ecoam até o céu mais alto a cada dia, eu lhes imploro, eu lhes peço, eu lhes ordeno: ‘Parem com a repressão’”, disse, um dia antes de ser assassinado. Em seus discursos, costumava pedir o fim da violência política. Realizava reuniões, intermediava o diálogo, socorria o povo até ser atingido fatalmente naquele 24 de março, enquanto presidia missa na Capela do Hospital do Câncer, Hospital La Divina Providencia, na região noroeste da cidade.

“Monsenhor estava se preparando para a consagração. Dizem que ele tinha visto o atirador se preparar. Não foi no momento que levantou o cálice, nem foi atingido no coração, como se propaga para dar um dramatismo. Foi no peito, com uma bala de calibre 22 expansiva. Assim, ele cai”, conta o guia da peregrinação, baseado no relatório da Comissão da Verdade salvadorenha.

Não qualquer guia, mais um que, assim como dom Oscar Romero, protagonizou aqueles anos de Guerra Civil. Ele foi um membro da Resistência Nacional, Forças Armadas Resistência Nacional (RN-FARN). Aqui será chamado de MR, para manter sua segurança. Casado, pai de dois filhos, é natural de San Salvador, tem 58 anos e uma grande admiração pelo arcebispo salvadorenho. Acredita que o bispo teve um papel fundamental na luta pela ainda frágil democracia salvadorenha.

“Quando ele foi morto, as negociações para não irmos ao conflito acabaram, e nós fomos ao que passou a ser chamada de ‘Guerra Prolongada’ para os câmbios que geraram os acordos de paz de 1992”, contou MR. Depois de firmados os acordos de paz, o conflito armado parou, o que para o ex-combatente foi uma estratégia da direita do país, a qual criou a Lei de Anistia, para ele, um dispositivo “político e ideológico”.

“A Lei de Anistia permitiu encobrir e proteger os crimes de lesa-humanidade e abusos do poder e a força de muitos militares e civis envolvidos em esquadrões da morte”, avaliou MR, que ainda assim acredita que os acordos têm sido importantes para o avanço da sociedade rumo à democracia, à liberdade de imprensa e aos direitos humanos, que durante a ditadura lhes foram negados.

MR e sua família buscaram refúgio no Brasil em 1989. Estavam fugindo da repressão. “Os serviços de inteligência do Estado tinham capturado nosso pessoal e, por meio de tortura, conseguiram informação detalhada dos nossos endereços. Tivemos que deixar o país.” E deixou, retornando após os acordos de paz já como jornalista, graduado nos bancos universitários goianos. De volta a San Salvador, MR e sua família passaram a se dedicar a preservar a memória de luta dos salvadorenhos. Contando a história que tempos atrás foi calada. Apontando os caminhos que monsenhor Oscar Romero percorreu.


Terra de martírio − A capelinha, onde dom Oscar Romero foi assassinado permanece lá. Simples, com seus bancos de madeira. Acolhe gente, também simples, de todo lugar. Em seu altar estão gravadas as palavras: “En este altar Mons. Oscar A. Romero ofrendo su vida a Dios por su pueblo”, recordando que naquele chão já escorreu o sangue de um mártir. Para parte do povo salvadorenho, o sangue de um santo.

Cercada por folhagens, a pequena igreja já foi local de residência do bispo, que optou no início de seu arcebispado a viver em um quarto atrás do altar da pequena capela, no Hospital do Câncer. “Monsenhor dizia que o pastor tinha que estar ao lado dos pobres, então em um primeiro momento como arcebispo viveu em um quarto atrás do altar. Foram cinco meses”, disse uma das Irmãs Carmelitas Missionárias de Santa Teresa, que cuidam do atual Centro Histórico Monsenhor Oscar Romero.

“Houve durante o Concílio Vaticano II o compromisso de alguns bispos do mundo inteiro de viverem a vida na pobreza radical, era o famoso Pacto das Catacumbas, e com certeza para um bispo morar atrás do altar, ele deve ter assumido essa perspectiva de espiritualidade”, disse padre José Renato Ferreira, diretor espiritual da peregrinação, tentando encontrar explicações para o gesto do arcebispo.

Já em 1977, as Irmãs Carmelitas entregaram as chaves da residência do bispo, que fica a poucos metros da capelinha onde morou e foi assassinado. Uma casinha também simples, pequena, que guarda relíquias de dom Oscar Romero. Objetos pessoais que dizem muito do homem que gostava de fotografar e que, segundo historiadores e teólogos, foi convertido pela vivência pastoral e pela realidade de seu povo.

“Nomeado bispo, passou por um processo de profunda conversão e assumiu a causa dos pobres. Sentiu profundamente o assassinato do padre Rutílio Grande, seu secretário, e o de milhares de lideranças camponesas, de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que se levantavam contra a ditadura militar imposta sobre El Salvador”, explicou em artigo, na ocasião do aniversário de martírio de dom Oscar Romero, o frei carmelita Gilvander Luís Moreira.


A preocupação com seu povo estava estampada também entre os livros encontrados na estante de sua antiga casa, hoje centro histórico. Alguns títulos mostravam sua preocupação com a América Latina, com a formação das CEBs. A Teologia da Libertação estava presente junto às duas cartas pastorais que escreveu em seu breve arcebispado.

Em um segundo cômodo, encontramos roupas litúrgicas, pares de óculos, fotos pessoais, lenços, um calendário com o último compromisso marcado no dia 24 de março, às 18h15. A cama em que repousava e o rádio onde gravava seu diário ainda compõem o cenário sem seu protagonista. Todo o processo de martírio do bispo também está registrado na casa, ao lado de outro processo, o do massacre durante seu funeral, na catedral metropolitana no dia 30 de março.

“Pelo menos umas 30 mil pessoas estavam nas praças e ruas que rodeiam a Catedral de San Salvador. Naquele momento, unidades militares do exército se apostaram entre tetos e terraços de edifícios frente ao templo e dispararam. Isso provocou uma desordem que levou a morte de muitas pessoas”, recorda MR, apontando para as fotos do funeral.

O corpo de dom Oscar Romero encontra-se na Cripta da Catedral, mas suas vísceras, seu coração, estão enterradas no jardim da casinha, o atual centro histórico, abaixo da gruta onde se encontra uma imagem de Nossa Senhora. É local de silêncio e oração, visitado por fiéis, pelo som dos pássaros e da brisa que chega para amenizar o calor, a vida.

Assassinato na universidade – Além do assassinato de dom Oscar Romero, outro caso é emblemático e ainda presente no imaginário dos salvadorenhos. Seja pelos poucos anos passados ou pela brutalidade do crime: o assassinato de seis sacerdotes jesuítas em 16 de novembro de 1989, nocampus da Universidade Centro Americana (UCA), que mostra a conduta dos militares. Foram assassinados, naquele dia, o reitor, o espanhol Ignácio Ellacuría, junto a Ignacio Martin Baro, Segundo Montes, Amando Lopez, Juan Ramon Moreno e o salvadorenho Joaquin Lopez, além da cozinheira Elba Julia Ramos e sua filha de 15 anos, Celina Mariceth Ramos.

Os restos mortais estão enterrados no campus. O quartinho onde os corpos de Elba e Celina foram encontrados, mortos, permanece ali. Tornou-se uma capelinha e local de peregrinação para cristãos, estudantes e militantes de direitos humanos. Nas paredes, há fotos de ambas. Suspensa no ar a indignação de tamanho crime, que o jornalismo aqui não alcança a imparcialidade.


Um coronel, dois tenentes, um subtenente e cinco soldados foram processados em 1991 pelo crime: sete foram absolvidos. O coronel Guillermo Benavides e o tenente Yusshy Mendoza foram condenados a 30 anos de prisão, sendo beneficiados posteriormente pela anistia decretada pelo então presidente Alfredo Cristiani (1989-1994), poucas horas antes da publicação de um relatório da Comissão da Verdade da Organização das Nações Unidas (ONU), que atribuiu ao alto escalão militar salvadorenho a responsabilidade pelo massacre.

Sobre o assassinato de dom Oscar Romero, a Comissão da Verdade em San Salvador da ONU concluiu que Robert d´Aubuisson, fundador do partido Aliança Republicana Nacionalista (Arena) e dos esquadrões da morte, que liderava, “deu a oficiais do exército a ordem para assassinar o arcebispo”. Alguns dias depois, o congresso local, controlado pelo Arena, editou a lei de anistia, impedindo que d´Aubuisson fosse processado.

A Comissão da Verdade registrou mais de 22 mil queixas de violência política, somente entre janeiro de 1980 e julho de 1981. 60% eram de assassinatos sumários; 25% eram sequestros; e os demais, torturas; 85% atribuíam-se a atos do exército, polícia e esquadrões da morte; 5% à FMLN. O trabalho da comissão encerrou-se em julho de 1991, pois teve apenas três meses de prazo.


Do martírio à santidade – Não por acaso este homem, o pastor do povo salvadorenho, teve seu processo de beatificação retomado. Aberto em 1994, estava paralisado, mas com o papado de Francisco, o caminho para a beatificação de dom Romero parece ter ganho um novo ritmo. “Para mim, Romero é um homem de Deus (...) O processo tem de continuar, e o Senhor deverá nos dar um sinal. Os postuladores têm de trabalhar, pois não há algum impedimento”, disse o papa à imprensa em agosto  deste ano. Hoje, o processo está em estudo na Congregação para as Causas dos Santos e aguarda o reconhecimento do martírio ou a atribuição de um milagre.

Para o bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia, dom Pedro Casaldáliga, dom Oscar Romero já é santo. “Foi um cristão de verdade, que se deixou converter pelo povo dos pobres e pelo sangue dos mártires. Um cristão que viveu a fé encarnada na caminhada histórica de seu povo. Um santo da nossa América na Igreja da Libertação”, declarou com exclusividade à reportagem da Revista Família Cristã.

A Igreja também reconheceu, ainda que tardiamente, o papel de dom Oscar Romero na luta do povo salvadorenho. Em documento final da Conferência de Aparecida (SP), realizada em 2010, os bispos declararam: “É preciso reaprender as lições de Romero e buscar proclamar sua profecia. É preciso reatar sempre o casamento entre a Igreja e os pobres”.

Matéria enviada por e-mail.
Fonte: Família Cristã 946 - Out/2014
Inserido por: Família Cristã

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