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quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

"A convivência com o Semiárido é uma construção social e histórica extremamente complexa e importante"

Gleiceani Nogueira - Asacom*
10/12/2014
Por ocasião dos 15 anos da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), celebrados no dia 26 de novembro, a presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Maria Emília Pacheco, concedeu uma entrevista à jornalista da ASACom, Gleiceani Nogueira. O Consea é um órgão consultivo ligado à presidência da República que faz o controle social de diversas políticas, entre elas, a política de acesso à água no Semiárido.

Na conversa, a presidenta destaca a estratégia da estocagem como fundamental para a convivência com o Semiárido e a promoção da segurança alimentar e nutricional dos povos do Semiárido. Ela também destaca o papel da ASA na construção e formulação de políticas públicas.

Maria Emília também ressalta o envolvimento dos agricultoras e das agricultoras nos processos de mobilização e educação promovidos pela ASA, que, ao seu ver, são a base para a construção de políticas públicas emancipatórias a exemplo do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) e do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2). Para finalizar, ela destaca os principais desafios para se avançar na construção de um Brasil Agroecológico.

Convivência com o Semiárido x segurança alimentar e nutricional
No meu ponto de vista, a promoção de segurança alimentar no Nordeste, nessa visão de convivência com o Semiárido, no bioma da Caatinga, que se contrapõe à visão de combate à seca, é uma construção social e histórica extremamente complexa e importante. Pra que ela se concretize hoje, a participação das organizações populares e sociais é extremamente importante. Um destaque que eu faço nessa percepção é que, progressivamente, a Articulação Semiárido começou a trabalhar com uma visão de estoque, mas uma visão que articula o estoque da água e também de armazenamento de alimentos, de sementes crioulas, que no Nordeste tem vários nomes: sementes da paixão, sementes da resistência, que são denominações muito próprias que mostram como a conservação, a multiplicação das sementes, como ela está enraizada nas práticas dos camponeses e camponesas. E dessa visão de estoque inclui também o estoque de forragens dos animais. E aproveitando também as pastagens nativas. Então essa visão de estoque que articula essa importância desses bens pra produção é um aspecto extremamente importante e está intimamente associado com a nossa perspectiva de promover a segurança alimentar e nutricional e, eu diria mesmo, que até a soberania alimentar porque essa construção social, essa articulação, tem permitido e garantido a autonomia dos agricultores e agricultoras. E também porque progressivamente a ASA também vem incorporando a perspectiva agroecológica. Então, essa visão de promoção de soberania alimentar, de segurança alimentar e nutricional no Semiárido vem cada vez mais junto com a ampliação das práticas agroecológicas, a interação do movimento agroecológico com este movimento que é liderado pela ASA.


Eu queria também acrescentar porque eu chamei atenção pra essa visão de estoque. Muitas vezes, as pessoas que não estão no Semiárido, que não conhecem o trabalho da ASA, pensam só nas tecnologias, que são essenciais, elas são parte desse processo de construção da convivência com o Semiárido. A multiplicação e o reconhecimento das inúmeras tecnologias sociais, que também não são apenas as cisternas, são muitas outras, cisterna-calçadão, são muitas denominações que eu nem saberia dizer todas. Mas o que eu recentemente li num documento da ASA que me pareceu extremamente importante é essa visão dos vários usos da água. É muito interessante essa concepção que é chamada de quatro linhas da água. A água de beber inclui direito à agua para as populações que são dispersas, para os pequenos aglomerados, a água nas escolas. Depois tem a água de produzir, quando se fala água de produzir estamos falando da produção de alimentos, a água nos quintais produtivos e para criação animal, para os sistemas agroflorestais chamados SAFS. Tem as águas comunitárias que são os pequenos e médios açudes, tanques de pedra e a ideia da água de emergência, a bomba d’água popular. Por que eu chamo atenção pra isso? Porque isso que eu caracterizei como uma visão e uma prática extremamente complexa, se a gente parar pra observar essas quatro classificações, nós vemos que aquela palavra-chave [estoque] inverte as prioridades. Há um tempo quando se falava da água, do direito à água no Nordeste, a palavra central era o emergencial e, agora, nós vemos que com esse trabalho, essa construção histórica da ASA, o emergencial é um aspecto, ele deixa de ser a prioridade porque tem uma perspectiva mais estruturante de enfrentar a questão da seca e a convivência com o Semiárido expressa, como eu disse, com essa palavra-chave que é o estoque. Não se perde de vista que há situações emergenciais, mas elas vão dando lugar às iniciativas mais estruturadoras. Essa é uma grande inovação, é uma grande conquista.

O papel da ASA na formulação e execução de políticas públicas
Pra mim são muitos aprendizados que a ASA proporciona pra nós com sua ação em rede. Em primeiro lugar porque eu vejo fortemente um envolvimento das famílias e das comunidades que vão construindo, como a gente poderia dizer assim, vão construindo teias. Vão criando as bases pra o sentimento e pra prática do pertencimento. E vão, num movimento como se fosse mais ou menos assim, espiral, vão envolvendo organizações de base no plano local, municipal, microrregional, estadual, interestadual. E é essa capilaridade que confere bastante vigor à ASA, no meu entender. Quem, como eu, já participou de vários encontros da ASA, não deixa de registrar e também até de se emocionar com os depoimentos das pessoas que manifestam seu entusiasmo de pertencerem à ASA. Eu digo isso inicialmente, e parece que isso é distante da pergunta que você me faz sobre a participação da ASA na construção de políticas. Mas isso é uma base, vamos dizer assim, sociopolítica educativa fundamental pra essa construção porque a ASA então tem capacidade de combinar os processos educativos e articulação, e mobilização social, de pressão social também sobre o governo, e negociação.

Essa base é fundamental para o papel da ASA na formulação e execução de políticas, e mais do que isso, na sua capacidade de influenciar pra que se afirmem políticas públicas de caráter emancipatório. Isso é o que eu vejo no Programa Um Milhão de Cisternas, que passou a ser incorporado como política de governo, a partir de 2003, isso foi um avanço extremamente importante. E, depois também mais adiante, em 2007, alçando novos voos com o P1+2, que é Uma Terra Duas Águas, que é a água pra produção. E, mais recentemente, o fato de ter sido apresentada a proposta da criação dos bancos de sementes no Semiárido é mais um passo muito importante nas nossas políticas públicas porque nós vivemos também muitas ameaças em relação aos direitos dos agricultores sobre o uso da biodiversidade. Tem um projeto de lei em caráter de emergência no Congresso que é o projeto 7735, que traz uma violação de direitos das comunidades tradicionais e dos camponeses. Nós do Consea temos o papel de acompanhamento de controle social dos Termos de Parceria da ASA com o Ministério do Desenvolvimento Social e acabamos de aprovar uma recomendação que tem esse sentido, que expande, se não me falha a memória, pra 600 bancos de sementes que vão beneficiar, cada um deles, no mínimo 20 famílias. Isso é extremamente importante.

Então o conjunto dessas políticas que a ASA vem influenciando, modificando, invertendo prioridades, é essencial pra que a sociedade entenda esse papel. Acho que quanto mais divulgarmos essa história da mudança dessas políticas junto com o papel da ASA, acho que nós faremos um grande serviço pra sociedade que não tem esse conhecimento, e, sobretudo, poder mostrar que essa incidência nas políticas públicas também vem mudando a relação do Estado com a sociedade, tanto no plano local, quanto no plano nacional porque o combate à seca que, no passado, era baseado em ações pontuais e de caráter clientelista, baseados no favor, vai dando lugar à afirmação de direitos, ao reconhecimento desses agricultores e agricultoras como sujeitos políticos que são portadores de direitos e que são capazes de formular, inovar políticas, de executá-las, e não como beneficiários. É assim que, ao meu ver, se expressa esse significado da ASA na construção de algumas propostas de políticas públicas.

Os desafios de um Brasil Agroecológico
A concepção agroecológica em primeiro lugar ajuda a questionar a concentração e a má distribuição dos bens da natureza. Isso é um aspecto extremamente importante e eu quero valorizar a aproximação cada vez maior que a ASA tá fazendo com a promoção da agroecologia e a interação com o movimento agroecológico também. E por que eu começo falando da concentração e má distribuição dos bens, da terra, da água? Porque falar da convivência com o Semiárido, a meu ver, é uma forma de dialogar concretamente com a construção social da agroecologia e, em primeiro plano, fazer uma crítica das estratégias do agronegócio que com as técnicas de irrigação por sulcos, instalações de pivôs centrais, desperdiçam água e causam um impacto enorme na natureza e na saúde também das pessoas porque essas técnicas, combinadas com o uso intensivo de produtos químicos, nos fazem um chamamento sobre a necessidade de aprofundarmos a proposta de reforma agrária e de reconhecimento dos direitos territoriais. Então o avanço da agroecologia no Brasil depende desse enfrentamento em primeiro plano.

Essa percepção da democratização do acesso à terra é fundamental pra ampliarmos a Política de Agroecologia e Produção Orgânica, que já foi uma conquista ter uma política e um plano, mas é preciso ver agora como avançar na concretização. É por isso que eu também entendo que é preciso que a gente amplie a nossa interação com a sociedade. Nós precisamos ampliar nossos campos de aliança, nós precisamos sensibilizar a sociedade pra o que significa avançar com a agroecologia no Brasil. O que significa do ponto de vista da qualidade do alimento, que tem que ser saudável, o que significa do ponto de vista da relação com o meio ambiente. Nós temos um modelo no Brasil que vai afastando cada vez mais a sociedade da natureza e a agroecologia ajuda a reatar esses elos, ajuda a fazer uma reaproximação entre quem produz e quem consome. Por isso é que na expansão da agroecologia é preciso que a gente também, progressivamente, avance numa proposta de política de abastecimento alimentar no país, que vai desde iniciativas locais, que é como eu dizia antes, o reconhecimento da importância desses circuitos de proximidade, de um apoio às feiras agroecológicas, a essa relação mais direta de quem produz e quem consome. Ao mesmo tempo ampliar a agroecologia significa fortalecer programas como o Programa de Aquisição de Alimentos, o Programa de Alimentação Escolar ou os programas chamados de produtos da sociobiodiversidade, que foram se construindo antes mesmo de nascer a política de agroecologia e que são parte constitutiva dessa perspectiva agroecológica.

E falar do fortalecimento desses programas significa enfrentar, por exemplo, obstáculos que nós vemos hoje que são as normas sanitárias. Nós precisamos também debater com os órgãos de controle do Estado porque o que aconteceu com agricultores e agricultoras que executavam com o PAA, por exemplo, no Paraná que acabaram presos. Isso precisa se transformar num tema de continuidade nos nossos debates. A política pública não pode ser uma questão de polícia. O PAA é uma questão de política pública e nós defendemos de forma sistemática que haja transparência, que haja controle social, mas é preciso apurar quais são as normas, quais são os instrumentos que regem a execução desses programas porque, muitas vezes, são pensados para grandes indústrias e não para uma pequena agroindústria familiar que é um exemplo que eu comecei a dizer das normas sanitárias. Se nós estamos defendendo o alimento como patrimônio, se nós queremos comida de verdade, no campo e na cidade, como é o lema da próxima Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, nós precisamos adequar a legislação ao que é a produção do alimento em base artesanal, ter esse alimento como patrimônio, trazer a dimensão cultural, a dimensão nutricional, pra dialogar mais profundamente com a perspectiva agroecológica e adequar essa legislação. Quero lembrar que nesse momento, de acordo com as normas, às vezes uma galinha caipira ou um ovo caipira estão bloqueados de chegarem até a alimentação escolar porque não têm um sistema de vigilância sanitária instituído nos municípios. Então nós estamos vivendo esse grande paradoxo porque nós comemos cada vez mais produtos ultraprocessados que têm uma quantidade enorme de componentes químicos, que estão nas prateleiras dos supermercados, os alimentos in natura com resíduos de agrotóxicos em quantidades enormes como mostra o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos, o PARA, e ficam os agricultores e agricultoras impedidos de levarem esses alimentos tradicionais, que são tão importantes, tanto na nossa cultura alimentar, como também pra gerar renda, e pra, como eu disse, amplificar e aprofundar esse elo entre quem produz e quem consome. Já existe a proposta do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (PRONARA) e precisamos continuar com a articulação e mobilização para que ele se concretize e para que o governo assuma essa proposta.

Ao mesmo tempo também pra avançar na agroecologia precisamos de uma assistência técnica e extensão rural e, no movimento agroecológico, nós preferimos falar de conhecimento, da construção do conhecimento, porque essa é uma mudança que a perspectiva agroecológica traz. Não é uma imposição de saberes, é um diálogo de saberes, então vamos aprofundar em cada realidade, com as populações, com suas identidades, com sua história, com sua relação com a natureza, eles trazem saberes que precisam dialogar com o saber acadêmico e a assistência técnica precisa ser contextualizada de acordo com a cultura, as características da população, o bioma. Saudamos que por outro lado haja hoje uma chamada [pública] de agroecologia porque ela mudou um pouco a perspectiva metodológica, ela incorpora um pouco das nossas percepções, das nossas propostas. Mas ainda precisa avançar porque precisa entender o que é a prática da troca de saberes, através dos intercâmbios, essa ação em rede dos próprios agricultores, que são agricultores multiplicadores de práticas, de saberes, isso deve ser constitutivo da concepção oficial também da assistência técnica. Esse passo ainda precisamos aprofundar.

*Com colaboração de Clarice Brasil (Asacom)
Fonte: http://www.asabrasil.org.br/Portal/

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