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sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O novo brasileiro

Esse clima de hostilidade não é o desdobramento natural de uma convicção política. Não se iluda, é rancor.

Por Max Velati
 
Achei que poderia escapar do tema. Disse a mim mesmo que a mídia já estava saturada de opiniões sobre as eleições e meus pitacos não iriam acrescentar nada. Considerei que, como chargista da Folha de S. Paulo, já havia publicado em nanquim e aquarela os meus dois centavos de crítica e reflexão.

Mas não consegui fugir.

Nas questões políticas, sigo os preceitos da Medicina que adverte que no mundo não existem doenças, mas doentes. Para mim isso significa que os candidatos devem ser examinados um a um e escolhidos ou descartados a despeito de seus partidos, que afinal são siglas vazias que na prática abrigam qualquer um e não expulsam ninguém.

Escolher um candidato para mim é tarefa cheia de minúcias: exige avaliar discursos, propostas, caráter, vícios, virtudes e preparo intelectual. Não busco santos, mas estadistas. Aceito as falhas humanas se encontrar as virtudes cívicas. Esta visão tão desapaixonada da política é uma aberração nos dias de hoje. Numa eleição marcada pelo choque de forças, pelos discursos inflamados e pelas atitudes apaixonadas, o uso do intelecto parece descabido. Mais vale empunhar a bandeira do que desconfiar das falácias; mais vale enfrentar a polícia do que estudar História; mais vale hostilizar o grupo rival do que pensar no futuro do país; mais vale tripudiar o derrotado do que avaliar a que custo a vitória foi obtida.

Não vi uma eleição. Vi o choque de forças, mas não vi debate. Vi confrontos de torcidas organizadas, mas não vi planos de governo. Vi manipulação de dados sobre o que foi feito, vi acusações sobre o que não foi feito, mas não vi propostas concretas sobre o que fazer e como fazer o que é preciso ser feito. Vi paixão, vi emoção, mas não vi reflexão. Vi duas celebridades disputando os holofotes, representando ferozmente interesses opostos em detrimento dos interesses reais e urgentes do povo brasileiro. Vi um evento sagrado para a democracia ser transformado em um espetáculo bizarro de demagogia, fanfarronice e paixão cega, adequada aos gramados, mas impensável nos parlamentos, útil para aliviar o stress, mas imprestável para traçar destinos.

Uma verdadeira cultura não pode se contentar em decidir os seus rumos apenas pela paixão. É preciso preservar o intelecto, que permite com certa frieza estabelecer a ordem, os valores e as prioridades. Renunciar ao poder de reflexão é renunciar à capacidade de pesar, julgar e decidir pelo melhor. Boa gestão é justiça.

A prova de que renunciamos ao intelecto está nas ruas. A prova é o rancor. A prova é o clima de hostilidade, a ferida aberta, o muro erguido nas redes sociais, o país dividido em dois territórios no mapa da estupidez. A prova de que abandonamos o pensar é o imbecil moral em plena gestação, esse novo brasileirinho hostil, raivoso e vingativo.

Não se iluda, é rancor. Esse clima de hostilidade não é o desdobramento natural de uma convicção política. O rancor nasce de uma pobreza intelectual que não aceita críticas ou reprovações. Ninguém mais pesa, examina e avalia. Todo mundo apenas sente e o sentimento permite tudo, perdoa tudo e justifica tudo. "Se for intenso, é do bem".

Se o erro existe, é culpa do outro.

E assim vamos pavimentando a nossa História com a democracia correta nos seus ritos, mas enlouquecida nos seus processos e monstruosa nas suas promessas.
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é chargista de Economia da Folha de S. Paulo.
Fonte: http://domtotal.com/noticias/

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