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terça-feira, 21 de outubro de 2014

Camponesas dizem não aos transgênicos

Argentinas e brasileiras são protagonistas de frentes de resistência ao modelo de agricultura industrial.

Por Silvio Anunciação

Elas se autodescrevem como camponesas. São agricultoras, meeiras, sem-terra, boias-frias, assentadas, extrativistas... Em sua maioria, índias, negras e descendentes de europeus. Para a jornalista e pesquisadora da Unicamp Márcia Maria Tait Lima, que estudou este grupo de mulheres no Brasil e Argentina, as camponesas dos dois países são, hoje, protagonistas da luta contra o modelo de agricultura industrial, contra as sementes transgênicas e pela soberania alimentar na América Latina.
A intensidade do protagonismo, aliada à produção social dessas mulheres, sobretudo no Brasil, fez emergir, conforme a pesquisadora, uma nova “ética”, muito próxima do ecofeminismo, conceito que articula temas como gênero, meio ambiente e crítica a modelos de desenvolvimento e padrões tecnológicos. Os apontamentos da jornalista integram as conclusões de um estudo inédito e interdisciplinar desenvolvido por ela como parte de sua tese de doutorado defendida recentemente junto ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp.
“Diante dos impactos dos transgênicos e do modelo de agricultura imposto por estes alimentos, as mulheres camponesas se manifestam, propondo alternativas e tornando-se protagonistas nesta luta. Ou simplesmente não querendo aquela situação, rechaçando-a. Seja em movimentos mistos compostos por homens e mulheres ou em movimentos exclusivos de mulheres, estas camponesas estão na ponta de lança da crítica ao modelo de agricultura industrial e aos alimentos geneticamente modificados”, conclui Márcia Tait.
“A população do campo é a mais afetada pelas sementes transgênicas, uma derivação do pacote tecnológico. Apesar das controvérsias científicas, há um consenso de que nos últimos anos cresceu a utilização dos agroquímicos. E quem está na ponta desta contaminação são as pessoas que estão vivendo ali. Além do aspecto da saúde, há outros impactos, como a própria perda da terra, com um arrendamento para a monocultura, atividade intimamente ligada a este contexto”, completa.
No Brasil, o foco do estudo foi o Movimento das Mulheres Camponesas (MMC), que surgiu no Rio Grande do Sul e Santa Catarina e, atualmente, encontra-se disperso pelo país. O MMC foi criado em setembro de 2003 e está associado à Via Campesina Internacional, organização internacional de camponeses composta por movimentos sociais e organizações de todo o mundo.
Na Argentina, foram pesquisadas camponesas do nordeste (NEA) do país. A região – onde a maior parte de população vive no campo – apresenta os piores índices de desenvolvimento econômico e social da Argentina. Ao mesmo tempo, a atividade agrícola monocultura tem sido intensificada, gerando resistência das mulheres camponesas, que se dedicam à atividade de subsistência.
“Nos dois países, as mulheres, mais que os homens, têm uma preocupação maior com a saúde, com a família, com o alimento... Vários aspectos na construção social da mulher camponesa fazem com que ela se sensibilize mais por essas causas e continue lutando. Nas reuniões e encontros, a quantidade de mulheres é visivelmente superior. O homem, por uma alienação ou devido à necessidade relacionada a um papel social que ainda é muito forte no campo, que é o de prover e gerar a renda, acaba não se envolvendo. Às vezes, portanto, uma parcela masculina maior se acomoda se não há algum beneficio econômico imediato. E a mulher, não. Ela sempre está pensando: ‘pode trazer um benefício econômico, mas não é só isso que importa’”, acrescenta.
As principais lideranças entrevistadas por Márcia Tait, pertencentes ao MMC de Santa Catarina, foram Carmem Munarini; Juraci Franciscana; Maria Paula; Maria Salete; Noeli Borda e Rosalina Nogueira. Na Argentina, a pesquisadora ouviu, entre outras, Lucrécia Marcelli, da cidade de General José de San Martín; Maria Godoy e Julia Olmos, de Córdoba; Marina Pino, Anita Oliva, Olga Malvase e Carmem Ortiz, de Goya; Mônica Scherf e Regina Haller, de Puerto Rico; e Teresa Simon, de Eldorado.
A jornalista foi orientada pelo docente Renato Peixoto Dagnino. O professor da Unicamp atua no Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do IG e coordena o Grupo de Análise de Políticas de Inovação (Gapi), que se dedica, há mais de duas décadas, a pesquisar as relações entre ciência, tecnologia, inovação e sociedade, a partir de enfoques como a história e sociologia da ciência e da tecnologia, a economia da tecnologia, a administração pública e análise política. O estudo contou com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
“O Gapi permitiu esta interdisciplinaridade de temas. As linhas de pesquisa do grupo apresentam essa preocupação com a transformação social, no contexto de uma produção que vê o social para além da empresa. E o meu doutorado, assim como o mestrado, tem essa abordagem engajada e crítica à tecnociência, entendida como uma ligação entre ciência, tecnologia e mercado. A nova biotecnologia, a base dos transgênicos, é um dos principais exemplos para entendermos a tecnociência”, critica Márcia Tait.
A pesquisadora da Unicamp obteve coorientação da filósofa feminista Alicia Puleo Garcia, docente da Faculdade de Filosofia da Universidade de Valladolid (UVA), da Espanha. A filósofa, professora convidada do Programa de Pós-Graduação do IG, é uma das pioneiras nos estudos mundiais sobre ecofeminismo, umas das vertentes que, segundo Márcia Tait, contribuiu para ampliar a reflexão e o diálogo com os discursos, ações e concepções das mulheres campesinas. Alicia Puleo é autora, entre outros, de Ecofeminismo para otro mundo posible (Editora Cátedra).
“A relação entre os discursos das mulheres camponesas e ecofeminismo tangencia diversos momentos da minha pesquisa. O ecofeminismo surge na década de 1970 junto com a segunda onda do feminismo e os movimentos verdes. Pode ser entendido como uma aliança entre o feminismo e o ecologismo. Para Alicia Puleo, há quase três décadas o feminismo aceitou o desafio de refletir sobre a crise ecológica a partir de suas próprias noções. O resultado foi a emergência do ecofeminismo como uma forma de abordar a questão ambiental a partir das questões postas pelo feminismo e de categorias como mulher, gênero, androcentrismo, patriarcado, sexismo, cuidado, entre outras”, explica a jornalista.
Nova "ética"
A partir dos discursos e práticas das mulheres campesinas, Márcia Tait afirma que elas vêm construindo uma nova “ética” feminista com a natureza, muito próxima do ecofeminismo. Na opinião da pesquisadora do IG, essas mulheres latino-americanas vêm gerando conhecimentos comprometidos com esta ética singular em relação aos humanos e não humanos, propondo uma abordagem não reducionista para os problemas atuais.
Esta “ética” insere os impactos negativos dos cultivos transgênicos num contexto mais amplo de crítica, resistência e práticas alternativas ao modelo de produção agrícola industrial, além de remeter a outras questões fundamentais que envolvem as crises ambiental, social e alimentar. Trata-se, na verdade, de uma teoria que vem sendo construída pelas mulheres camponesas, esclarece a estudiosa.
“Ao resistirem ao modelo de agricultura industrial, às sementes transgênicas e outros pactos tecnológicos, os movimentos de mulheres camponesas questionam, mesmo de forma implícita, a aparente neutralidade destas tecnologias e do conhecimento a partir do qual foram desenvolvidas. De maneira explícita, elas mostram sua resistência à ciência ocidental capitalista e as novas agrobiotecnologias por reconhecerem-nas como portadoras de valores que promovem modos de desenvolvimento agrícola destrutivos do ponto de vista das práticas camponesas e da manutenção de sua autonomia.”
Márcia Tait informa que as pesquisas de campo foram compostas de viagens com permanência de três a sete dias que incluíram visitas a casas, locais de trabalho e reuniões onde estavam localizadas situações de interesse para a pesquisa no Brasil e Argentina. Nestes locais foram realizadas conversas informais e entrevistas semidirigidas com as mulheres. As pesquisas foram realizadas em três etapas durante os anos de 2010 e 2011.
Jornal da Unicamp, 17 de outubro de 2014 a 02 de novembro de 2014.
Fonte: http://domtotal.com/noticias/

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